Você já parou pra pensar o que seria do mundo sem a treta? Claro, seria um lugar onde reinaria a paz e harmonia entre todos os seres humanos e tal. Mas será que teríamos chegado tão longe? Obras de arte magníficas ainda teriam sido produzidas, pesquisas e descobertas científicas teriam sido realizadas se não existisse aquele sentimento, aquele pensamento interior dizendo “Quem aquele f*#% d# p@%*# pensa que é? Ele acha que é melhor que eu? Pois vai ele ver só!”. Desde que o mundo é mundo e o homem vive em sociedade, rivalidades, desafetos e intrigas fazem parte da nossa história. E não é difícil supor que essas rivalidades contribuíram para que alguns gênios buscassem a perfeição. Os exemplos são muitos: Mozart e Salieri, Shakespeare e Marlowe, Darwin e Owen, Tesla e Edison, João Gordo e Dolabella… mas hoje vamos falar da grande treta da Renascença: Leonardo Da Vinci vs. Michelangelo!
Bom, Leonardo Da Vinci e Michelangelo Buonarroti dispensam apresentação, né? Dois dos maiores artistas de todos os tempos. Ambos pintores e escultores que viveram a virada do século XV para o XVI e conceberam obras admiradas até hoje. Apesar da diferença de idade entre eles, Da Vinci era 23 anos mais velho que Michelangelo, a rivalidade entre os dois era inevitável. Quando Michelangelo chegou à idade adulta e começou a se destacar, Da Vinci já era um artista consagrado. Mesmo assim, Michelangelo se recusava a aceitar que Da Vinci era esse gênio todo que se dizia, já que ele considerava a si próprio sim como o grande artista de seu tempo. Ainda que pensasse desta forma, Michelangelo não deixou de absorver minuciosamente as técnicas de pintura desenvolvidas por Da Vinci, de claro e escuro, luz e sombra e esfumaçado, bem como os estudos da anatomia humana a que Da Vinci tanto se dedicou.
Eram realmente artistas antagônicos. Da Vinci ficou famoso pela procrastinação. O acervo de rascunhos e obras inacabadas dele é vasto, já suas pinturas que foram totalmente concluídas, são apenas 16, muito pouco para um artista que viveu até os 67 anos de idade. Já Michelangelo era o que se pode chamar de workaholic. Vivia em seu ateliê mais de 12 horas por dia trabalhando incansavelmente em suas obras. Da Vinci era conhecido por ser um homem sociável, de personalidade amistosa e calma, sempre bem vestido e arrumado. Já Michelangelo era comparável a um pinscher, era baixinho, arrogante e muito briguento. Ambos viviam na mesma cidade, Florença, um dos principais polos da arte renascentista. E foi justamente o governo da cidade que começou a treta entre os dois.
Em 1504 o governo convidou Da Vinci e Michelangelo para pintarem, cada um em uma parede do Palazzo della Signoria, então sede do governo florentino e hoje conhecido como Palazzo Vecchio, um afresco retratando alguma batalha em que o povo de Florença tivesse lutado e saído vitorioso, claro. Os dois artistas já não iam muito com a cara um do outro, mas o dinheiro oferecido era bom demais pra se recusar. Então lá foram eles. Nos meses que se seguiram um alfinetava o outro constantemente, e as obras mesmo, nada de sair. Ficou famoso o comentário de Da Vinci vendo os esboços de Michelangelo, que sempre gostou de retratar os homens extremamente fortes e com músculos bem definidos. Da Vinci teria dito que não entendia por que Michelangelo insistia em retratar os homens como se fossem uma noz aberta.
Mas o ápice da treta entre os dois aconteceu na rua. Antes de contar o que rolou, vale dizer que Da Vinci era um pintor irrepreensível, mas não era tão genial esculpindo. As esculturas de Da Vinci são poucas, e são bem acima da média, mas não são incríveis. E isso o frustrava muito. Uma dessas esculturas era o Cavalo de Sforza. E não preciso dizer que Michelangelo era um escultor brilhante, tá aí o Davi até hoje, que não me deixa mentir. Bom, Da Vinci estava na praça principal de Florença conversando com uma turma. E eles falavam sobre a obra de Dante Alighieri, o grande escritor. Coincidentemente Michelangelo passava por ali, e Michelangelo era admirador e grande conhecedor da obra de Dante. Da Vinci, sabendo disso, aparentemente sem más intenções, chamou Michelangelo para a conversa com uma frase do tipo: “Ô Michelangelo, chega aqui, estamos falando do Dante e tô sabendo que você manja do assunto.”. Como bom pinscher, Michelangelo ouviu o convite de Da Vinci como um desaforo cheio de ironia e sarcasmo e, raivoso, descarregou um caminhão de insultos a Da Vinci. Um dos insultos teria sido algo como: “Quem é você pra falar comigo, nem esculpir um cavalo você consegue, fez aquela aberração do Sforza!”. Da Vinci ficou ofendidíssimo e foi embora deprimido, se sentindo um artista medíocre.
Davi, de Michelangelo Cavallo Sforza, de Leonardo Da Vinci
Depois disso, ambos abandonaram o trampo no Palazzo della Signoria e foram embora de Florença. Da Vinci se mudou para Milão e Michelangelo foi pra Roma a convite do Papa, para fazer um job na Capela Sistina. É claro que não foi só a discussão na praça que motivou a mudança dos dois. Com certeza, eles foram atrás de melhores ofertas de trabalho. Mas com certeza a inimizade contribuiu para que abandonassem o trabalho no palácio e adiantassem sua saída de Florença, claro, os dois levando o pagamento do trabalho que ficou lá inacabado.
No fim das contas, histórias como essas são, de certa forma, um alívio para nós. Da Vinci foi o artista mais completo e brilhante de todos os tempos, além de pinturas icônicas como Mona Lisa e Dama com Arminho, era cientista, arquiteto e acadêmico. Michelangelo era um artista pungente e conseguia transformar blocos de mármore em figuras fascinantes, como é Davi e a Pietá, além de seu afresco incomparável na Capela Sistina. Foram verdadeiros gênios. Ainda bem que ficaram também registros como este contado aqui, do lado humano desses caras, que nos coloca em pé de igualdade com eles. Somos todos reles mortais sempre atrás de diversão e arte, e, de vez em quando, de uma boa treta.
Vai fundo!
Para ouvir: Uma seleção de canções para embalar aquela treta no meio da festa! Top 10 tracks da treta!
Para assistir: Uma das tretas mais célebres da história é a de Mozart e Salieri. Uma história incrivelmente bem retratada na excelente cinebiografia de Mozart, Amadeus, filme de Milos Forman lançado em 1984.