14 de maio de 1998, 9 horas da noite. As ruas e New York estão estranhamente menos habitadas do que o normal. Mesmo nas vias mais movimentadas como a Brodway e a 5th Avenue se via muito menos gente do que de costume. Em contra partida, alguns bares e pubs e estavam lotados, havia uma certa tensão no ar, e todos estavam de olho no relógio, esperando dar nove e meia da noite, e atentos à televisão que já estava ligada. Não se tratava da final do Super Bowl, o mais importante acontecimento esportivo dos Estados Unidos. Entretanto, o valor dos trinta segundos do comercial de TV a ser exibido no intervalo do programa que seria transmitido naquela noite passava um milhão de dólares, valor comercializado somente nos intervalos justamente do Super Bowl. Mas não se tratava de nenhum evento esportivo. O que todos esperavam naquela noite era ouvir aqueles slaps de baixo pela última vez e se despedir de Cosmo Kramer, Elaine Benes, George Costanza e Jerry Seinfeld. Às nove e meia da noite de 14 de maio de 1998 a rede de TV NBC transmitiu o último episódio a série Seinfeld, que estreara 9 anos antes, em julho de 1989.
O Stand Up Comedy é uma das mais sólidas e originais instituições norte americanas. É um gênero de humor que começou lá mesmo, nos Estados Unidos, e ninguém no mundo consegue fazê-lo melhor do que a elite de humoristas estadunidenses. Alguns estudiosos insistem em forçar uma barra dizendo que o Stand Up se originou na Idade Média, com os bobos da corte, por se tratar de um único homem fazendo graça para entreter pessoas. Pode até ser, mas ele se fazia valer de muitas outras técnicas, como a mímica, dança, imitações e cambalhotas, além de simplesmente contar piadas. Dá pra dizer com mais clareza que o Stand Up começou no fim do século XIX nos Estados Unidos, nas feiras de vaudeville, espécie de circo com diversas atrações artísticas. Entre os vários artistas, tinha o mestre de cerimônia, que precisava ser carismático e bom de improviso para entreter as pessoas entre um número e outro no palco. Alguns desses mestres de cerimônia passaram a ficar famosos por suas tiradas bem humoradas. Bob Hope foi um desses mestres de cerimônia. Foi o primeiro deles a ganhar espaço numa rádio, para apresentar seus textos de humor, em 1938. Inspirados por programas de rádio como o de Bob Hope, alguns artistas da comunidade judaica, que sempre soube rir de si mesma, do estado de New York começou a produzir textos e se apresentar fazendo monólogos em bares. Na década de 1950 surge Lenny Bruce para formatar de vez o Stand Up Comedy como o conhecemos hoje. Desde então é um gênero humorístico que faz parte do cotidiano e da cultura popular dos Estados Unidos. E foi nesse contexto que um tal Jerry Seinfeld começou a se destacar no início dos anos 1980.
Jerry Seinfeld é natural da cidade de New York e desde muito jovem se interessava por comédia. Não demorou até começar a escrever seus próprios textos e se apresentar nos comedy clubs da cidade. Em 1981 se apresentou no legendário programa de Johnny Carson, que raramente se manifestava positivamente quanto a novatos. Seinfeld foi um desses raros novatos que ganhou o sinal positivo de Carson, o que lhe rendeu notoriedade e muitos convites para aparecer na TV em outros programas do gênero, como o famoso Late Show com David Letterman. No mesmo ano ele chegou a fazer parte do elenco de uma sitcom chamada Benson. Mas ficou claro que Seinfeld não era um bom ator, e ele foi dispensado do papel em pouco tempo. Depois dessa experiência ruim, Jerry prometeu a si mesmo que não entraria mais nessa de fazer sitcoms. Promessa que seria quebrada em 1989 graças a uma oportunidade única dada pela NBC e um comediante neurastênico chamado Larry David.
Larry David também é novaiorquino e conhecia Jerry Seinfeld do circuito de stand up da cidade. Larry também é comediante e nos 80 fez alguns bicos na TV. Chegou a trabalhar no inovador Saturday Night Live, mas não foi bem sucedido. Teve apenas uma esquete escrita por ele veiculada, e ainda assim, passou no fim do programa, depois da meia noite, e quase ninguém viu. Isso irritou muito David, que discutiu com a produção do programa e acabou sendo demitido. Porém, dias depois, ele voltou ao set do programa, como se nada tivesse acontecido. Ao ser questionado se não tinha sido demitido, ele disse que não, que tinha sido só um mal entendido. Claro que ele não continuou por lá. Mas essa história lhe renderia um dos episódios mais clássicos da série que ele viria a escrever com Jerry Seinfeld anos depois. Em 1989 a NBC viu potencial nos textos e no carisma de Seinfeld e lhe ofereceu a chance de criar uma série sua, como quisesse. Jerry gostava muito dos textos de Larry David e o convidou a escrever um piloto. Jerry sabia que não era bom ator, então decidiu que interpretaria ele mesmo. A ideia inicial era o programa ser uma espécie de mockumentário, uma câmera seguiria Jerry no seu dia a dia para ver como ele observava o cotidiano e criava suas piadas para seu show de stand up. No fim, o formato foi abandonado e decidiram retratar o dia a dia de Jerry convivendo com os seus amigos.
Com o aval dos autores, passou a ser corriqueiro dizer que Seinfeld é uma série sobre nada. Mas isso não é verdade. Na real é justamente o contrário. É uma série sobre tudo! Mas antes de seguir em frente, precisamos dizer que Seinfeld foi uma série muito inovadora. Até 1989 todas as sitcoms seguiam um certo padrão. Giravam em torno de um núcleo familiar, tinham situações muito exageradas para render boas piadas e passavam longe de qualquer tema que pudesse gerar conflitos, como política, sexualidade, religião e etc. Faziam sucesso na época séries como Alf e Married… With Children (que acabou se tornando um clássico da TV, uma série realmente engraçada, protagonizada pelo inestimável personagem Al Bundy). Seinfeld veio com uma proposta totalmente diferente. Pra começar, não tinha família envolvida. Depois, Larry David disse que só escreveria a série se fosse seguido o lema: “Sem abraços, sem aprendizado”. Ou seja, não haveria finais edificantes onde os personagens erram, se redimem e aprendem alguma coisa no final. Os personagens foram criados para serem pessoas comuns, até mesmo com um caráter questionável em alguns momentos. E o mais importante de tudo: a série era simplesmente baseada nas observações e interpretações do cotidiano que Seinfeld e Larry David faziam sobre o dia a dia e escreviam para seus números de stand up. O texto do episódio piloto, por exemplo, nada mais é do que uma reflexão de homens solteiros, que moram sozinhos, sobre receber a visita de uma mulher em casa. E funciona demais!
Além do mais, a série foi amadurecendo muito bem ao longo dos anos. Encontrando sua própria linguagem, se adaptando às mudanças culturais dos anos 90 e acabou influenciando praticamente todas as séries, sitcoms em especial, que vieram depois de 1991, quando Seinfeld realmente se tornou fenômeno de público e crítica. O humor crítico e nonsense de Seinfeld é facilmente identificado como referência nos textos de séries como Mad About You, Friends e até mesmo no inusitado late night Space Ghost de Costa a Costa, sem falar na divertida série Lois & Clark, que além de contar com esse humor cotidiano do Seinfeld, vale ser mencionada, já que o Superman é o herói favorito de Jerry Seinfeld e é muito citado por ele. Referências à parte, Seinfeld trouxe novos ares para a televisão. Em especial aqui no Brasil Seinfeld foi essencial para criar a primeira geração de comediantes que iriam criar uma cena efervescente de stand up comedy no país, encabeçada por Marcelo Mansfield, Diogo Portugal, Rafinha Bastos e Márcio Ribeiro.
Ainda que todas as informações citadas até agora neste texto já deem uma boa ideia de porquê o último episódio de Seinfeld causou tanta comoção, isso só pode ser realmente compreendido ao assistir a série. Normalmente quando vemos qualquer conteúdo, seja textos ou videos, falando sobre a série, é comum serem citados os inúmeros momentos memoráveis e os personagens marcantes. O livro sobre mesas de centro que vira uma mesa de centro, criado pelo Kramer, a loja de cupcakes da Elaine que só vende o topo do bolinho, George sendo demitido e voltando para trabalhar como se nada tivesse acontecido, tal qual o ocorrido com Larry David no SNL, Jerry indo para Florida comprar de volta o carro que ele deu para seu pai, o dono do restaurante paquistanês, o soup nazi, o Newman, o pai do George gritando “Serenity now!” (inclusive o pai do George é interpretado pelo pai do ator Ben Stiller)… e tantas outras situações. A secretária eletrônica do George com a música Believe it or Not, da série America’s Greatest Hero, Elaine namorando um cara desconfiada que ele é contra o aborto, Kramer usando manteiga como creme corporal, Jerry vestindo camisa de pirata na TV… é muita coisa! E tem o fato de, ao contrário do que acontecia nas sitcoms até então, eles não evitavam, e sabiam lidar muito bem, com assuntos polêmicos. O episódio mais marcante nesse aspecto é o que Jerry, George, Kramer e Elaine fazem uma aposta para ver quem consegue ficar sem se masturbar por mais tempo. É um roteiro genial de Larry David em que fica claro do que se trata a aposta sem que a palavra masturbação seja citada em momento algum do episódio.
Para completar, Jerry Seinfeld decidiu encerrar a série em 1998, na nona temporada, porque queria que o programa terminasse no auge. E realmente, no fim dos anos 90 era a sitcom mais assistida dos Estados Unidos, transmitida em canais de tv a cabo pro mundo todo. Jerry Seinfeld chegou a declarar que se espelhava nos Beatles, que estiveram juntos por 9 anos e se separaram no auge da banda. Claro que ele levou em conta os anos em que a banda lançou discos, entre 1961 e 1970, afinal eles já se apresentavam como The Beatles desde 1959. Enfim. Depois de 9 anos protagonizando a série de comédia mais influente e inovadora dos anos 90, Jerry Seinfeld voltou a investir no Stand Up com shows lotados e produziu uma web série muito interessante onde reúne suas três paixões: comédia, café e carros esportivos. Em Comedians In Cars Getting Coffee Jerry Seinfeld convida um comediante por episódio para tomar um café, sendo que ele vai até a casa do convidado com um carro escolhido especificamente para aquela pessoa, e dirige com o convidado até uma cafeteria. Em especial o episódio com o ator Michael Richards, que interpretava Kramer na série, é muito bacana!
Aqui na Strip Me a gente também adora dar boas risadas. Só por essa razão, já faria sentido a gente ter uma estampa fazendo referência à série Seinfeld. Mas, além disso, a gente também adora o fato de ser uma série inovadora, criativa, original e um verdadeiro ícone da década de 90. Então vem conferir todas as nossas estampas de séries e cinema, de música, cultura pop, arte e muito mais. E vale a pena ficar esperto sempre na seção de lançamentos na nossa loja!
Vai fundo!
Para ouvir: Ao invés de colocar aqui uma playlist, hoje vamos sugerir um episódio de podcast. O já tradicional e ótimo podcast Nerdcast, que trata sobre tudo que envolve cultura pop, fez um episódio bem completo e muito divertido de se ouvir sobre Seinfeld, sob o ponto de vista de fãs, incluindo um participante que mora nos Estados Unidos e estava lá na fatídica noite do último episódio da série. Vale a pena conferir! Nerdcast 212: Seninfeld – Tudo Sobre o Nada.
Para assistir: Quem realmente gosta do humor de Seinfeld não pode perder a série que Larry Davi criou e protagoniza na HBO. Curb Your Enthusiasm é uma série brilhante. Nos mesmos moldes de Seinfeld, Larry interpreta ele mesmo, e a série mostra como é sua vida de típico novaiorquino neurótico, vivendo sem ter que muito o que fazer, já que ele vive confortavelmente com o dinheiro de royalties e direitos autorais da série Seinfeld até hoje. Vale a pena demais! É uma série ótima, com aquele humor que beira o constrangimento, na onda do The Office.