Logo de cara as pessoas não entenderam o Nirvana. O Nevermind foi lançado em setembro de 1991 e foi subindo aos poucos a lista de discos mais vendidos. Vendas estas impulsionadas pelo clipe de Smells Like Teen Spirit e tal. O disco foi um sucesso, Come As You Are nas rádios… Mas as pessoas realmente ainda não entendiam a banda. A compreensão mesmo da importância do Nirvana para a música e como o Nevermind foi um divisor de águas só veio alguns anos depois da morte do Kurt Cobain. Foi quando as pessoas puderam olhar com certa distância e ver toda a cena grunge, as bandas que vieram depois como o Silverchair e outras. A mesma coisa aconteceu com outro marco fundamental dos anos 90: o filme Pulp Fiction.
Hoje em dia Pulp Fiction é facilmente considerado um dos filmes mais importantes da história do cinema. É inovador, apesar de ser um retrato super fiel de seu tempo. Muita gente já conhece a história de Quentin Tarantino para chegar em Pulp Fiction. Mas vale a pena dar uma geral aqui. Tarantino tinha escrito os roteiros de Amor à Queima Roupa e Assassinos por Natureza, que foram vendidos e ganharam as salas de cinema pelas mãos de Tony Scott e Oliver Stone respectivamente. Com a grana desses filmes, ele pôde viabilizar Cães de Aluguel. O roteiro caiu nas graças de Harvey Keitel, ator já muito respeitado em Hollywood, que topou atuar no projeto e atraiu outros atores e a confiança dos estúdios. O filme é lançado em 1992 com ótima aceitação da crítica, mas sem grande sucesso de público. Neste ponto Tarantino consolida seu nome na indústria e parte para um projeto um pouco mais ousado.
A trajetória do Nirvana e do Quentin Tarantino são bem semelhantes nesta transição do início da carreira para uma explosão de popularidade. Ambos tiveram estreias promissoras, bem faladas, mas sem popularidade, o disco Bleach e o filme Cães de Aluguel. Trabalhos que deram estofo para que eles pudessem dar passos mais livres para criar sua grande obra. É até difícil dizer o que faz de Pulp Fiction um filme tão espetacular. Mas com certeza o roteiro é parte fundamental.
Ainda que o jovem Roger Avary seja creditado como co-autor do roteiro de Pulp Fiction, é evidente que Tarantino é quem comandava o show. Tarantino tem o talento de escrever diálogos simples, fluídos, interessantes e que, em poucos minutos, entregam uma profundidade inacreditável dos personagens. No brilhante diálogo entre Jules e Vincent no carro, na primeira cena após os créditos de abertura, você já entende que são dois caras que trabalham juntos, tem um grau de amizade, são bandidos, curtem drogas… é muita informação num diálogo simples sobre fast food na Europa. E este é só o começo. O roteiro todo é recheado desses diálogos. Além de tratar de histórias distintas, mas que se cruzam em algum momento, foi também o trabalho de edição e montagem que fez toda a diferença.
Em 1992 Cameron Crowe lançou o filme Singles, todo baseado na cena musical de Seattle e que conta três histórias distintas que se cruzam em alguns momentos. O filme é bem divertido e tal, mas não é memorável. Quando Crowe viu Pulp Fiction em 1994, chegou a declarar que finalmente tinha entendido como montar e editar um filme com histórias paralelas, admitindo que seu flme era bem simplório neste aspecto. Cameron Crowe não deveria ser tão exigente consigo mesmo, porque aquela montagem e edição de Pulp Fiction nunca havia sido feita antes na história do cinema. Nunca ninguém subverteu e misturou a cronologia de uma trama daquele jeito. E funciona lindamente. Aliás, é um dos charmes do filme, essa cronologia zoneada, que impressiona muito quando se assiste pela primeira vez, mas não se torna cansativa quando se assiste de novo, e de novo, e de novo…
Além do mais, neste filme Tarantino nos entrega duas coisas impensáveis naquela primeira metade dos anos 90: John Travolta sendo levado a sério como ator e o ressurgimento da surf music. O elenco de Pulp Fiction é incrível porque Tarantino apostou alto. Trouxe um John Travolta desacreditado, vindo de comédias pequenas e meio rechonchudo, apostou em nomes muito pouco conhecidos como Uma Thurman e Samuel L. Jackson e se ancorou em dois grandes nomes com ótimos papéis, mas sem grande protagonismo, Harvey Keitel e Bruce Willis. Talvez o fato de que não exista um grande protagonista faz com que todas as atuações sejam irrepreensíveis. Já a trilha sonora, com o perdão do clichê, é um personagem a mais no filme. É uma trilha sonora tão fantástica e com uma conexão tão forte com as cenas, que não dá pra dissociar uma coisa da outra, ou dizer, “Ah, naquela cena, podia ter tocado tal música ao invés dessa.”. Assim como não dá pra imaginar outro ator interpretando o Jules, não dá pra imaginar outra música que não seja Girl, You’ll Be a Woman Soon na cena pré overdose da Mia.
Mas o fato é que Pulp Fiction não foi um sucesso arrasador de bilheteria quando foi lançado nos cinemas. Mas virou ítem cada vez mais concorrido nas vídeo locadoras com o passar dos anos (vídeo locadora era como se a Netflix tivesse uma loja física e você fosse lá pegar um filme emprestado, em VHS ou DVD e tivesse que devolver depois). Anos depois de seu lançamento, Pulp Fiction passou a ser visto como um divisor de águas. Antes dele, a violência não era tão explícita e os diálogos não eram tão casuais. De repente, ficou mais comum ver um filme como Clube da Luta e diálogos como “Com que celebridade morta você lutaria?” “Gandhi.” “Boa resposta.”. E se tornou mais raro ver personagens como Stallone Cobra dizendo “Você é a doença e eu sou a cura.” antes de disparar um tiro de escopeta.
Pra finalizar, podemos fechar o paralelo entre Quentin Tarantino e Nirvana. Para ambos, sua segunda obra foi a mais marcante e tida como sua obra máxima. Depois de Pulp Fiction, Tarantino tirou um pouco o pé do acelerador e pegou um roteiro pronto para somente dirigir, uma coisa menos autoral e mais leve. Veio Jackie Brown. Depois do Nevermind, o Nirvana também fez o mesmo e lançou Incesticide, um disco com sobras de estúdio, demos e covers. Em seguida, a banda ressurgiu com um disco forte para reafirmar sua posição de grande banda de rock. Foi lançado In Utero, que até poderia ter sido um disco duplo, pelo que dizem. Tarantino também resolveu reafirmar seu posto de diretor autoral cheio de referências com a saga Kill Bill. Depois do In Utero, o Nirvana acabou. Mesmo sem a morte de Cobain, a separação era inevitável. Era preciso se renovar. Assim como Tarantino. Depois de Kill Bill, Tarantino passou a vislumbrar novos ares e passou a produzir filmes considerados de época, numa clara guinada de renovação e renascimento de sua carreira.
Mas ainda é Pulp Fiction a obra mais importante de Tarantino. Um filme que representa uma renovação artística, uma ode a boa música, uma quebra de padrões estéticos e muita diversão! Certamente um dos filmes favoritos na Strip Me, uma fonte de inspiração e um ícone inconfundível da cultura pop.
Vai fundo!
Para ouvir: Claro, aquela seleção das melhores da trilha sonora do Pulp Fiction! Top 10 Tracks Pulp Fiction.
Para assistir: Imperdível o curta divertidíssimo Tarantino’s Mind. Curtametragem de 2006 dirigido por Bernardo Dutra e Manitou Felipe, com Selton Mello e Seu Jorge no melhor papel de suas vidas trocando ideia num bar sobre os filmes do Tarantino. Disponível completinho e free no Youtube.