100 ANOS DA SAM-SP: A REVOLUÇÃO

100 ANOS DA SAM-SP: A REVOLUÇÃO

Tudo tem um ponto de partida, um início. O fogo no rastilho que precede a explosão. Por exemplo: Não é nenhum absurdo afirmar que se Bruce Pavitt e Jonathan Poneman não tivessem criado a Sub Pop, o grunge, movimento musical que mudou os rumos da música pop nos anos 90, não existiria. A maioria das bandas, como Nirvana, Soundgarden e Alice in Chains seriam bandas alternativas conhecidas somente no underground dos Estados Unidos. A verdadeira revolução que os discos Nevermind, Superunknow e Facelift causaram só aconteceu graças à existência da Sub Pop. Neste terceiro texto dedicado aos 100 anos da SAM-SP, a gente vai entender que a mesma coisa aconteceu com o movimento modernista brasileiro no começo do século XX. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi considerada um marco, o ponto de ruptura, só algumas décadas depois de ter acontecido. Na época teve alguma repercussão na imprensa paulistana, um burburinho no meio artístico, que deu um novo incentivo aos artistas mais ousados. uma chancela aos artistas para realmente buscarem novos formatos, novas linguagens, novas inspirações. Os anos que sucederam a Semana de Arte Moderna de São Paulo trariam a verdadeira revolução na arte brasileira, em especial na literatura e nas artes plásticas. Revolução esta que teve como protagonistas um casal extraordinário. 

É muito importante lembrar que os artistas brasileiros, em especial os modernistas, eram totalmente influenciados pelas escolas artísticas europeias. Sim, era uma arte de vanguarda, o expressionismo, surrealismo, eram escolas que causavam a mesma repulsa nos conservadores tanto aqui no Brasil quanto no exterior. Por mais que Anita Malfatti e Di Cavalcante na pintura, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia na literatura, imprimissem sua própria personalidade em suas obras, não só as técnicas, mas todas as referências eram estrangeiras. Faltava alguma coisa.  

Alguns meses depois da Semana de Arte Moderna ter acontecido, o escritor Oswald de Andrade conheceu uma mulher extraordinária! Uma mulher linda e cheia de talentos! Além de muito inteligente, era uma pintora sensibilíssima e muito criativa. Era Tarsila do Amaral. Os dois logo começaram a namorar, mas ela teve que partir para continuar os estudos em Paris no fim daquele mesmo ano. Oswald foi junto. Ali, na Paris do final da belle époque, o casal viva cercado de amigos, que eram também grandes artistas. Entre eles estavam os artistas plásticos Fernand Léger, Constantin Brâncuși, Georges Braque, Pablo Picasso e o poeta Blaise Cendras. Tarsila, essa mulher incrível, reunia esses e outros artistas em sua casa em Paris, onde oferecia granes almoços, servindo feijoada, caipirinha, doce de abóbora com coco, cigarros de fumo enrolados em palha de milho e cafézinho coado na hora. Você já deve ter lido esta história aqui neste blog a um tempo atrás.

A Tarsila do Amaral nasceu numa fazenda enorme de café em Americana, interior de São Paulo. Sua família era muito rica e progressista. Ela teve uma educação invejável e foi incentivada pelos pais a seguir carreira de artista, dando a ela a oportunidade de ir à Europa frequentemente. No início de 1922 ela já morava em Paris. Em fevereiro daquele ano, recebeu uma carta de sua amiga, Anita Malfatti, contando sobre o grande acontecimento da Semana de Arte Moderna em São Paulo e como os ares começavam a mudar nas artes do Brasil. No fim do segundo semestre de 1922, ela volta a São Paulo, onde conheceu Oswald de Andrade. Os dois se deram bem logo de cara, se apaixonaram e não tardariam a se casar. Foram a Paris no fim de 1922, voltaram ao Brasil em 1923, trazendo consigo o poeta Blaise Cendras para conhecer o país. Durante sua estadia no país, o poeta francês conheceu toda a turma modernista e se encantou com a efervescência da cidade de São Paulo. Mas foi uma pequena viagem para o interior de Minas Gerais que mudaria pra valer as coisas. 

Acompanhado de Oswald e Tarsila, Cendras conheceu o interior paulista e as cidades históricas mineiras. Ficou completamente estupefato com o que viu e viveu. A simplicidade poética do povo do campo, o chamado caipira, a beleza e exuberância da arte barroca de Minas Gerais, a comida inacreditavelmente deliciosa, a fauna e flora da região… O impacto foi tamanho que Cendras, numa conversa com seus amigos artistas brasileiros, fez um desabafo revelador. Ele disse que não entendia o que os brasileiros buscavam tanto na arte europeia se a própria existência do Brasil caipira era de uma riqueza inesgotável! Ele não entendia como aqueles artistas não buscavam inspiração em sua própria terra, sua própria gente, sua própria cultura! Foi um soco no estômago que abriu os olhos daquele pessoal. A revolução começara finalmente! Em 18 de março de 1924 é publicado no jornal Correio da Manhã o Manifesto da Poesia Pau Brasil, que seria mais encorpado e lançado em livro de mesmo título ainda naquele ano. Escrito por Oswald de Andrade, o texto sugere uma busca da identidade brasileira, um aceno ao primitivismo, mas com uma linguagem moderna, uma narrativa com a fluidez e liberdade do expressionismo. Os modernistas acabavam de descobrir o Brasil! 

Mas as grandes e fundamentais obras do modernismo brasileiro vão surgir somente em 1928, graças a um livro até então desconhecido escrito em 1557. Era o livro Hans Staden: Suas Viagens e Cativeiro Entre os Selvagens do Brasil. Hans Staden foi um aventureiro alemão que esteve no Brasil como explorador por duas vezes, uma em 1548, voltando para a Europa em 1549, e voltando ao Brasil em 1550. A história toda de Staden é inacreditável e merece ser lida. Nessa sua segunda viagem ao Brasil, aconteceu de tudo. Seu navio foi atacado por piratas, depois naufragou durante uma tempestade próximo a Santa Catarina, foi a pé até São Vicente, em São Paulo, uma epopeia cheia de aventuras. Até que em janeiro de 1554 ele estava na região onde hoje é a cidade de Bertioga. Praticamente na mesma semana em que o padre Manoel da Nóbrega fundava a cidade de São Paulo, do outro lado da Serra do Mar, Hans Staden foi capturado pelos índios Tamoio. Era uma tribo muito afeita à violência, desprezava os homens brancos e praticavam a antropofagia. Não eram meros canibais que comiam carne humana para matar a fome. Era um ritual eucarístico em que eles acreditavam que comendo a carne de seus prisioneiros, absorviam todas as virtudes do morto. Hans Staden viu aquilo acontecer mais de uma vez enquanto esteve preso na tribo. Ele conseguiu escapar dos índios em 1557, voltou para a Alemanha e escreveu este livro riquíssimo em detalhes sobre tudo que viveu no Brasil. 

Este livro é tão importante porque uma cópia dele, com texto original em alemão, foi adquirido em 1900, pelo barão do café Eduardo Prado, um dos paulistas mais ricos da época. Ele deu este livro para um botânico suíço que vivia no Brasil, chamado Albert Löfgren, que o traduziu para o português. Para ser editado e lançado no Brasil com o financiamento do próprio Eduardo Prado. Eduardo Prado este que era pai do Paulo Prado, o jovem e rico cafeicultor amigo dos modernistas que bancou a Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo. Foi Paulo Prado que, na metade da década de 1920, notando o interesse e a busca dos modernistas, em especial Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral, pelo Brasil profundo, deu a eles este livro. O casal Oswald e Tarsila ficaram impressionados com aquela história toda. E dali veio a inspiração para o antológico Manifesto Antropofágico e para a pintura brasileira mais icônica e importante da nossa história, o Abaporu, de Tarsila do Amaral. A saber, Abaporu em tupi significa Comedor de Gente. 

Tanto o Manifesto Antropofágico quanto o Abaporu foram lançados em 1928. No mesmo ano também foi lançado o livro Macunaíma, um verdadeiro divisor de águas na lieratura brasileira, que também foi influenciado diretamente pelo Hans Staden no sentido das tradições indígenas, mas que se misturou com a vida simples do caipira e a malandragem do brasileiro de camadas mais pobres das grandes cidades. Foram essas três obras grandiosas e geniais que realmente mudaram a maneira de se entender e de se fazer arte no Brasil. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o pé na porta, e as obras de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade realmente concretizaram a revolução que o modernismo tanto buscava. 

Uma história tão rica, tão interessante, tão recheada de atitude, de barulho, diversão e arte como é tudo que envolve a Semana de Arte Moderna de 1922 não poderia nunca passar em branco aqui na Strip Me! Por isso você encontra não só estampas relacionadas a este evento incrível, como muitas outras relacionadas às artes, música, cinema, cultura pop e muito mais! É só dar aquele conferida na nossa loja nos novos lançamentos

Vai fundo! 

Para ouvir: A produção musical no início do século XX era bem limitada e essencialmente de música erudita, né. Então, ao longo desses 4 posts sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna, vamos caprichar numa playlist cheia de brasilidade, com o que rola de som enquanto os textos são produzidos. Uma playlist que vai crescendo a cada post, até chegar a ser um top 40 tracks! SAM-SP 1922 – Top 30 Tracks.   

Para assistir: Em 2002 a TV Cultura fez um ótimo documentário sobre a semana de Arte Moderna de 1922. Com vários depoimentos de gente que fez parte do movimento modernista, em gravações antigas, claro, é um doc que vale a pena demais ser visto! Tá completinho no Youtube.   

Para ler: Com certeza a obra mais emblemática da literatura modernista brasileira veio a ser publicada 6 anos depois da Semana de Arte Moderna. Claro, é o indispensável Macunaíma, de Mário de Andrade. Um livro delicioso, divertido e que diz muito, mas muito mesmo, sobre o Brasil de ontem, de hoje e de sempre. Leitura necessária! 

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