Nossa Senhora Rainha do Mar

Nossa Senhora Rainha do Mar

O ano era 1962. O poeta Vinícius de Moraes e o violonista Baden Powell começavam uma parceria, que se mostraria muito prolífica no futuro. Era noite, os dois na casa de Vinícius conversavam e tomavam uísque enquanto ouviam música e buscavam inspiração para começar a compor. O Poetinha então coloca pra tocar uma fita que ganhara de um amigo baiano, com gravações feitas ao vivo de sambas de roda cantados em alguns terreiros de candomblé de Salvador. Aquelas músicas pegaram a dupla de jeito! Enquanto Vinícius de Moraes se encantava com a sonoridade das palavras de origem africana, as melodias simples e cativantes, Baden Powell ficou fascinado com os ritmos e em especial, com o som do berimbau. A dupla mergulhou na cultura afro-brasileira, de onde emergiu, em 1966, um dos discos mais importantes da música popular brasileira: Os Afro Sambas, de Vinícius de Moraes e Baden Powell.

Se hoje em dia uma figura como Iemanjá é tão presente na cultura brasileira, com certeza deve-se muito à obra de Vinícius e Baden. Foram eles que tiraram a cultura afro-brasileira dos guetos e apresentou para toda uma sociedade branca e judaico-cristã as belezas do candomblé e da umbanda, tornando Iemanjá, em especial, sua figura mais carismática e acolhedora. E não é para menos. A história de Iemanjá é riquíssima e cheia de mistérios!

Para entender a origem de Iemanjá, precisamos ter mente que ela resulta de diferentes lendas, cada uma vinda de um lugar diferente da África. Por si próprio, o candomblé é uma religião genuinamente brasileira, com matrizes africanas. Como bem sabemos, o Brasil recebeu milhões de negros escravizados, vindos da África. E eles vinham de povos e tribos muito distintas entre si. Congo, Moçambique, Guiné Bissau, Angola, Nigéria, Senegal… cada um desses países contavam com povos de culturas e crenças diferentes, mas com uma ou outra similaridade. O candomblé é o resultado do sincretismo entre essas culturas, onde predomina o Iorubá. A palavra Iorubá destina-se tanto a um grupo étnico, como também a uma religião, que é regida pelos orixás. Entre esses orixás, está Iemanjá.

Olocum é um dos mais antigos e poderosos orixás. Ele é o senhor soberano dos mais profundos oceanos. Reza a lenda que Iemanjá é sua filha. Já adulta, Iemanjá se casou e teve dez filhos, todos se tornariam orixás, ou seja, divindades. Para amamentar todos os filhos, ela acabou desenvolvendo seios muito grandes. Isso fez com que ela tivesse vergonha de si mesma, e também sofresse com chacota de outros orixás, incluindo seu marido. Cheia de raiva e vergonha, ela decide abandonar o marido e partir para outras terras. Nessa jornada, ela se apaixona por um rei muito possessivo. Porém esse rei a trai e ela, mais uma vez resolve partir. Mas o rei era muito poderoso e a perseguia por toda parte. Iemanjá então usou uma poção mágica dada por seu pai para escapar do rei. Tal poção a transformou num rio que desaguava no mar. Assim, Iemanjá se tornou a rainha dos mares e dos navegantes.

Existe ainda uma outra lenda interessante relacionada a origem de Iemanjá. A lenda conta que o primeiro filho de Iemanjá, Orungã, teria nutrido uma paixão incontrolável pela mãe. Certa feita, Orungã se aproveitou da ausência do pai para tentar violentar sua mãe. Iemanjá conseguiu escapar, mas, ao correr, acabou tropeçando e caindo e batendo a cabeça. Tal queda acabou por matá-la. Seu corpo então começou a inchar, e de seus seios e ventre, começaram a jorrar água, seu corpo se tornando um rico manancial de vida, que deu origem a um rio que desaguava no mar. Desse jorro de vida se originaram todos os outros orixás, como Xangô, o deus do trovão, Ogum, deus do ferro e das guerras, Oiá, deusa do rio Níger, Oxóssi, o deus dos caçadores e Omolu, o deus das doenças.  Essa versão da origem de Iemanjá, além de coloca-la como geradora de todos os orixás, alçando-a a importância e poder comparado somente a Oxalá, o orixá supremo, traz uma semelhança curiosa com a lenda do rei grego Édipo, que também se apaixonou por sua mãe, que também acaba morta.

Ainda há de ser dito que os sincretismos religiosos no Brasil uniram as religiões de matriz africana com o cristianismo. Surge assim a Umbanda. Neste caso os orixás também são reconhecidos como santos. No caso, Oxalá, o orixá supremo, é representado pela santíssima trindade: Pai, Filho e Espirito Santo e Iemanjá é reconhecida como Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Piedade e a própria Virgem Maria.

Seja qual for a origem de Iemanjá, o fato é que ela é um dos orixás mais poderosos e amados do candomblé. Festas e ritos em sua homenagem são realizados em várias cidades do Brasil em datas diferentes. Os mais famosos são as oferendas de Ano-Novo no Rio de Janeiro, onde, no dia 31 de dezembro, os devotos, ou filhos e filhas, de Iemanjá lançam ao mar suas homenagens. O mesmo acontece em Salvador todo dia 2 de fevereiro. A festa de Iemanjá de Salvador é a maior e mais famosa das celebrações à orixá. Neste dia, peixes, arroz, mel, rosas e palmas-brancas são colocados em pequenas canoas de madeira e soltas no mar. É comum que algumas dessas canoinhas sejam levadas pela correnteza de volta para a praia. Nestes casos, julga-se que Iemanjá não aceitou a oferenda.

Iemanjá é a personificação perfeita da cultura e espiritualidade brasileira. A imagem de uma mulher negra linda, purificada pelas águas dos rios e mares. A riqueza de sua personalidade, a multiplicidade de lendas envolvendo sua origem, sua representatividade na arte, música e religião do Brasil também encantam a todos nós da Strip Me. Por isso, entre tantas estampas incríveis e cheias de brasilidades, claro que Iemanjá ganhou seu espaço de destaque. Além disso, você ainda encontra camisetas de arte, de cinema, de música, de cultua pop e muito mais. Confere lá na nossa loja, onde, além de tudo, tem sempre lançamentos novos pipocando.

Vai fundo!

Para ouvir: o invés de uma playlist com um top 10, a recomendação é ouvir o clássico disco de Vinícius de Moraes e Baden Powell Os Afro Sambas, lançado em 1966. Um disco lindíssimo e muito inspirado. Além de sua beleza, é um disco fundamental por ter incorporado de forma intensa instrumentos de percussão  tipicamente africanos como o atabaque, congas e berimbau, que até então não eram utilizados na música popular brasileira. Além disso, foi o disco que apresentou o candomblé como fonte essencial da cultura numa época em que o Brasil vivia uma ditadura militar e imperava o pensamento conservador e exclusivamente cristão. É um disco fundamental. Ouça aqui.

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