100 ANOS DA SAM-SP: PÉ NA PORTA!

100 ANOS DA SAM-SP: PÉ NA PORTA!

Na semana passada você leu aqui o rebuliço que era o começo do século XX em São Paulo. Conservadores fazendo críticas, os artistas de vanguarda achando tudo chatíssimo e querendo dar uma renovada no rolê todo, o mundo recém saído de uma guerra mundial, por aqui uma república dominada pela bancada ruralista, com políticas excludentes, que só favoreciam os ricos. São Paulo se desenvolvia rapidamente com o dinheiro do café, se tornou uma cidade iluminada com a chegada da energia elétrica, o que permitiu criar-se uma fauna noturna de intelectuais endinheirados que se reuniam em bares e cafés até altas horas da noite, conspirando contra o parnasianismo, o classicismo e a chatice em geral que imperava nas artes brasileiras. E foi o artigo de Monteiro Lobato, Paranoia ou Mistificação, publicado no Estado de S. Paulo em 1917 que desencadeou uma ação mais efetiva entre o grupo de amigos de Anita Malfatti, alvo de Lobato no artigo, que destilou todo o seu desprezo pelas obras da pintora, com forte influência do surrealismo e expressionismo. Foi então que, além de Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Mário de Andrade, dentre outros artistas, passaram a se empenhar em produzir e divulgar uma arte mais contemporânea, provocadora e livre. Nesta época ainda não eram considerados modernistas, mas se auto intitulavam artistas futuristas! 

Mas demorou tanto tempo assim pra essa turma se organizar? O artigo de Monteiro Lobato foi publicado em 1917. Só 5 anos depois é que os modernistas conseguiram organizar um evento que os divulgasse amplamente? Demorou esse tempo todo sim. Mas, calma, porque muita coisa foi feita ao longo desse tempo. Um pouco antes ainda, Oswald de Andrade fez sua primeira viagem para a Europa. Voltou de Paris com o libertário texto Manifesto do Futurismo, do poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, embaixo do braço e disposto a implementar aquele mesmo senso de rebeldia, novidade, experimentalismo e liberdade no Brasil. No ano de 1918 ele se torna amigo muito próximo de Mário de Andrade, já que tinham em Anita Malfatti uma amiga em comum. Juntou-se á turma na mesma época o escritor Menotti del Picchia, o escultor Victor Brecheret, o pintor Di Cavalcanti e os escritores Guilherme de Almeida e Manuel Bandeira. Essa turma toda, entre 1917 e 1922 tiveram vários artigos publicados defendendo essa nova visão artística e exposições de telas e esculturas foram organizadas. 

O que viria a ser conhecido como movimento modernista tinha suas bases mais sólidas nas artes plásticas. As pinturas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Portinari e as esculturas de Victor Brecheret, sempre que expostas causavam muitas críticas no meio artístico e jornalístico e muita pouca atenção do público em geral. Os escritores Mario de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade publicavam seus artigos em periódicos insistentemente, defendendo a vanguarda da arte trazidas por eles mesmos da Europa. Foi no final de 1921 que, durante um jantar, em companhia do jovem e riquíssimo cafeicultor Paulo Prado, tiveram a ideia de fazer uma semana toda dedicada à arte moderna, com exposições e apresentações de música e leitura de textos e poesias. Paulo Prado, que não era artista, se prontificou a pedir uma ajuda a alguns de seus amigos também cafeicultores e riquíssimos, para que pudessem alugar o imponente Teatro Municipal para abrigar o evento. Já naquela noite começaram a articular ideias, pensar em que artistas participariam e etc. 

Dois fatos são muito curiosos nisso tudo. O primeiro é que Anita Malfatti precisou ser convencida a participar expondo algumas de suas telas. Depois de tanta crítica ao longo do tempo, a pioneira do expressionismo no Brasil estava cansada daquilo e não queria se expor. Ela não vinha de uma família rica, como Oswald de Andrade por exemplo, e tentava se manter longe dos holofotes, ganhando dinheiro pintando telas sob encomenda, dando aulas de pintura e etc. Sentia que participar de um evento como aquele colocaria seu nome em todos os jornais com críticas ferozes, que poderiam prejudicar sua imagem e fazer com que ela perdesse alguns trabalhos. Coube a Mario de Andrade, amigo e confidente de Anita, a missão de convencê-la. Missão esta cumprida com louvor. Outra curiosidade inacreditável é que o primeiro nome mais cotado para presidir a Semana, que seria responsável por fazer o discurso de abertura e seria uma espécie de mestre de cerimônias, era ninguém menos que Monteiro Lobato! Sim, porque apesar de todos os pesares, Lobato era amigo da maioria dos escritores modernistas. E ter Lobato na linha de frente significaria muito diante do público e da crítica especializada. Mas ele declinou o convite sem nem pensar, pois jamais pactuaria com aquele tipo de arte ultrajante (segundo ele próprio). Por sorte, de última hora, chega ao Brasil o diplomata e escritor Graça Aranha, um dos nomes mais respeitados na época, um homem rico, encantador e muito talentoso, um brasileiro que residia já há muitos anos em Paris, mas sempre vinha visitar sua terra natal. Em contato com a cultura europeia de vanguarda, Graça Aranha, ao ser convidado para presidir a semana de arte moderna de São Paulo, adorou a ideia e aceitou no ato! 

Com Paulo Prado financiando o Teatro Municipal e Graça Aranha confirmado para presidir o evento, não tinha como dar errado! E não deu mesmo. A Semana de Arte Moderna de São Paulo aconteceu de 13 a 17 de fevereiro de 1922. A programação era a seguinte: O saguão do Teatro Municipal de São Paulo ficaria aberto diariamente para visitação de uma enorme exposição com obras dos artistas Emiliano Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Zaina Aita, Ferrignac, Yan de Almeida Prado, John Graz, Vicente do Rego Monteiro, Antonio Paim Vieira, Victor Brecheret, Hildegardo Leão Velloso e Haarberg. Na noite do dia 13, uma segunda feira, a semana foi aberta com um discurso de Graça Aranha intitulado A emoção estética da arte moderna. Foi um discurso longo e bem monótono que rendeu nada mais do que aplausos protocolares. Em seguida sobe ao palco um conjunto de câmara que interpreta algumas composições de Heitor Villa-Lobos. Depois de um intervalo pro cafezinho e dar uma conferida nas obras expostas no saguão, o público retorna para que o poeta Ronald de Carvalho fizesse uma breve palestra falando sobre pintura e escultura moderna e declamando alguns versos de sua autoria. O público torceu o nariz, mas não fez muito alarde. Depois de algumas vaias, Ronald de Carvalho, espirituoso, respondeu ao público dando de ombros com indiferença: “Cada um fala com a voz que Deus lhe deu.”. A noite foi concluída com a apresentação do maestro Ernani Braga. 

A segunda noite de apresentações, na quarta-feira, dia 15 de fevereiro, não foi nada parecida com a estreia. Após a noite de segunda feira, os jornais fizeram duras críticas à exposição de obras de arte e às apresentações lítero-musicais pretensiosas. Farejando treta e algazarra, o público paulistano lotou o Municipal! Quem abre a noite é Menotti del Picchia com uma palestra sobre a literatura contemporânea. Ao exaltar uma literatura que foge dos padrões clássicos, del Picchia vai bem, mas recebe uma vaia enorme. Até que, no fim, ele anuncia que subirá ao palco Oswald de Andrade. O teatro vem abaixo, fazendo com que a vaia que del Picchia levou parecesse um abafado assobio. A vaia era descomunal. Oswald fica no palco parado por alguns minutos até que a vaia cesse. Finalmente em silêncio, ele começa a ler seu texto. E a vaia explode mais uma vez. Oswald declamou seu texto para ninguém, debaixo de vaias permanentes. Na sequência, Mario de Andrade sobe ao palco e a recepção é a mesma. Ele começa a ler com muita dificuldade. Em certo momento, ele para e espera que se faça silêncio. Quando todos param, ele diz: “Se for pra continuar assim, eu não continuo falando!” e uma gargalhada e um aplauso retumbante enchem o teatro. É feito um intervalo. Na volta das apresentações, a noite decorre com mais tranquilidade com uma apresentação de dança de Yvonne Daumerie e finalizando com um concerto de piano da pianista Guiomar Novaes, uma artista já consagrada e muito querida, a única a sair do palco sob aplausos satisfeitos. 

A noite de encerramento, na sexta-feira, dia 17 de fevereiro não foi tão movimentada. A atração principal era o compositor Heitor Villa-Lobos, que começava a ganhar notoriedade dentro e fora do Brasil. Apesar de sua formação erudita, era um músico contemporâneo, que começava a criar peças sinfônicas misturando elementos africanos e outras linguagens pouco convencionais. Entretanto, sua música era razoavelmente bem aceita. Por seu apelo popular, a noite de sexta feira foi toda dedicada à sua música, sem discursos e leituras e textos e poemas de escritores controversos, que poderiam gerar animosidade no público. Porém, o público lá estava para ver o circo pegar fogo. Quando Villa-Lobos sobe ao palco de fraque e calçando chinelos, o público desabou em vaias, acreditando ser aquela uma provocação a seja lá o que fosse. Porém, nada mais era do que uma unha encravada, ou algo parecido, que o impedia de calçar sapatos fechados. Mas com o tempo o público logo se acalmou e foi possível ouvir boa parte da apresentação de Villa-Lobos ao piano acompanhado de uma orquestra, que encerraria grandiosamente a Semana de Arte Moderna de São Paulo. 

Foi realmente um evento muito marcante e fundamental. Porém, o Brasil se daria conta disso só muito tempo depois. De imediato, a Semana de Arte Moderna causou muito falatório entre a sociedade paulistana, mas acabou dando origem a grandes obras e uma reestruturação enorme da arte no Brasil um bom tempo depois. Foi um verdadeiro pé na porta da arte moderna, que chegava pra ficar! E o que aconteceu nos meses e anos logo depois deste evento tão emblemático, você fica sabendo na semana que vem, no próximo texto deste mês, que é todo dedicado aos 100 anos da SAM-SP! Nesse meio tempo, você pode conferir as estampas especiais da Strip Me da Semana de Arte Moderna de 1922, sem falar de tantas outras estampas incríveis de arte, música, cinema, cultura pop e muito mais. Confere os lançamentos lá na nossa loja

Vai fundo! 

Para ouvir: A produção musical no início do século XX era bem limitada e essencialmente de música erudita, né. Então, ao longo desses 4 posts sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna, vamos caprichar numa playlist cheia de brasilidade, com o que rola de som enquanto os textos são produzidos. Uma playlist que vai crescendo a cada post, até chegar a ser um top 40 tracks! SAM-SP 1922 – Top 20 Tracks.  

Para assistir: Em 2002 a TV Cultura fez um ótimo documentário sobre a semana de Arte Moderna de 1922. Com vários depoimentos de gente que fez parte do movimento modernista, em gravações antigas, claro, é um doc que vale a pena demais ser visto! Tá completinho no Youtube.  

Para ler: Com certeza a obra mais emblemática da literatura modernista brasileira veio a ser publicada 6 anos depois da Semana de Arte Moderna. Claro, é o indispensável Macunaíma, de Mário de Andrade. Um livro delicioso, divertido e que diz muito, mas muito mesmo, sobre o Brasil de ontem, de hoje e de sempre. Leitura necessária! 

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