O que seria do turismo sem a superstição? Afinal, não dá pra ir a Roma e não jogar uma moeda na Fontana de Trevi, ou ir a Verona e não colocar a mão no seio direito da estátua da Julieta, ou ir a Nuremberg e não dar três voltas em torno da Bela Fonte, ou ir a Paris e não colocar um cadeado na Pont des Arts. Isso sem falar de lugares místicos por si só, que garantem vida longa, sabedoria, prosperidade e etc só por visitá-los, como o Taj Mahal, o centro histórico de Santiago de Compostela, as pirâmides do Egito, Stonehenge, Bodh Gaya, Jerusalém, Machu Picchu e tantos outros. Claro que o Brasil não fica atrás e tem os seus pontos turísticos para supersticiosos e místicos. Alto Paraíso de Goiás está acima de uma rocha de quartzo de mais de 4 mil metros quadrados, por isso é considerado um lugar de boas vibrações. Em Gramado, no Rio Grande do Sul, você pode colocar um cadeado nas grades da Fonte do Amor Eterno e garantir a sua bem aventurança no amor. Mas não existe nada que simbolize melhor a cultura, a religiosidade e a superstição brasileira do que as inconfundíveis fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim.
As fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim já extrapolaram as barreiras da religiosidade para se tornar ícone pop, um acessório que chegou a ser transformado em pulseira de ouro com brilhantes. Mas vamos com calma, porque vale a pena conhecer um pouco da origem dessas fitinhas tão emblemáticas. Para isso, precisamos nos lembrar que o Brasil ficou abandonado por quase quarenta anos após a chegada de Pedro Álvares Cabral por aqui. Somente em 1533 o rei português D. João III decide tomar posse das terras descobertas permanentemente através das capitanias hereditárias. Após muita confusão, violência e descaso para a instalação de tais capitanias, o rei decidiu instalar em seu novo território uma cidade que serviria de capital da colônia, com burocratas portugueses representando a coroa, para organizar melhor as coisas. Assim, em 1549 é fundada a cidade de Salvador, a primeira capital do Brasil.
Dois séculos depois, Salvador já havia crescido muito. O nordeste brasileiro vivia o auge da produção de açúcar e todos os impostos coletados dos engenhos iam parar na capital, e nem todo esse dinheiro chegava em Portugal como deveria, se é que você me entende. O fato é que a cidade crescia, bem como o prestígio do Brasil em Portugal. Assim, em 1745 foram iniciadas as obras de uma grande igreja na península de Itapagipe, região nobre da cidade de Salvador. A construção da igreja justificava-se para abrigar as imagens do Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Guia, vindas de Portugal. A Imagem de Nosso Senhor do Bonfim nada mais é que a representação de Jesus Cristo subindo aos céus. Já a Nossa Senhora da Guia é uma das muitas representações da Virgem Maria, esta, no caso, é considerada a protetora dos navegantes. A igreja ficou pronta em 1754 e logo se tornou a igreja mais importante da cidade. Acontece que nessa mesma época a descoberta do ouro na região e Vila Rica, Ouro Preto, Mariana e Diamantina fez com que Portugal, e o resto do mundo, voltasse suas atenções para o interior do Brasil. Para facilitar o transporte do ouro até o litoral, para ser enviado para Portugal, o reino acabou transferindo a capital do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763. Salvador entra então num período de estagnação econômica.
Em 1809, pensando em arrecadar dinheiro para manutenção da paróquia, um dos fiéis teve a ideia de criar a Medida do Senhor do Bonfim. Era uma tira de tecido medindo exatamente 47 centímetros, a mesma medida do braço direito de Jesus na imagem do Senhor do Bonfim. Por isso, a faixa era chamada de Medida do Senhor o Bonfim. Era uma tira de cetim ou seda de 4 ou 5 centímetros de largura, com o nome da igreja bordado com fios de ouro e vendidos a altos preços, mas muito comprados pelos nobres da cidade. A faixa era usada pendurada no pescoço, presa na base de chapéus (no caso das mulheres) ou simplesmente exposta dentro de casa. A prática da venda da Medida do Bonfim durou até meados dos anos 1940. Depois ficou esquecida. Até ressurgir nos anos 60 totalmente repaginada.
Na década de 1960 o turismo como negócio crescia muito, era uma novidade. Ao mesmo tempo, entre o fim dos anos 50 e início dos 60, o Brasil vivia um período raro de prosperidade e liberdade. Com isso, as religiões de origem africanas começam a se popularizar. O sincretismo da umbanda, que tem a representação de um santo católico para cada uma de suas entidades, fez com que a famosa Medida do Bonfim de antigamente, virasse uma fita, também com a medida de 47 centímetros, mas mais estreita, podendo ser amarrada no tornozelo ou no punho, e representando Oxalá, a mais importante divindade do candomblé, que tem na imagem do Senhor do Bonfim a sua representação. Outras fitas, desta vez coloridas, também passaram a ser comercializadas, cada cor representando uma entidade. O lance é que, ignorando a simbologia religiosa, os hippies baianos passaram a usar as tais fitinhas aos montes, pois eram coloridas e combinavam com o visual psicodélico, e a moda começou a se espalhar entre os jovens. Foi quando o setor de turismo da prefeitura viu o potencial daquelas fitinhas e entrou na jogada.
Para impulsionar a visitação da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, que sempre foi um dos lugares mais importantes de Salvador, a prefeitura passou incentivar a venda das tais fitinhas nos arredores da igreja, espalhando ainda que as fitinhas eram milagrosas, e se amarradas com três nós, cada nó representaria um desejo que a pessoa poderia fazer. Quando a fita arrebentasse naturalmente, com o passar do tempo, os desejos se realizariam. E a conversa funcionou bem demais. Não só os visitantes, como os próprios moradores de Salvador passaram a comprar as fitas e amarrar no braço, no tornozelo e também nas grades em volta da igreja. E normalmente, as pessoas compram as fitinhas de determinada cor, de acordo com o desejo a ser atendido. Por exemplo, a fitinha verde representa Oxóssi, a divindade da fartura e do sustento, para quem vai pedir prosperidade, amarelo é Oxum, divindade da fertilidade, para quem quer ter filhos, vermelho é Iansâ, divindade do amor e por aí vai.
Até o fim dos anos 70 as fitinhas eram de algodão e eram produzidas em Salvador mesmo, por pequenas empresas de tecelagem. Mas nos anos 80 a coisa ficou séria, a demanda cresceu muito e as fitinhas, perderam um pouco do charme e da personalidade ao serem fabricadas numa grande fábrica em São Paulo e feitas de poliéster. Mas não pense que isso diminuiu o interesse das pessoas. Até hoje, quem vai a Salvador não sai de lá sem um pacote de fitinhas para distribuir para a família e amigos quando voltar pra casa, muito menos sem deixar uma fitinha amarrada na grade da igreja. Aliás, a grade repleta de fitinhas já virou imagem de cartão postal de Salvador. As fitinhas se tornaram tão pop que o designer baiano Carlos Rodeiro criou a Pulseira do Senhor do Bonfim, que tem versões em ouro puro e com detalhes em brilhantes, safiras, rubis e esmeraldas. E, sabe como é, do jeito que as coisas estão, não custa nada comprar uma fitinha dessa e mandar um pensamento positivo pro ar, ao amarrar um nózinho.
As fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim são um símbolo tão único do Brasil, cheio de simbologias diversas e positividade, que não poderia deixar de fazer parte do sincretismo antropofágico cultural da Strip Me! Afinal, somos brasileiros, mas também somos pop art! Então vem conferir nossas estampas cheias de brasilidade, além de camisetas de arte, música, cinema, cultura pop e muito mais. Fica ligado sempre na nossa loja pra não perder os lançamentos.
Vai fundo!
Para ouvir: Uma playlist com tudo que só a Bahia tem! Bahia top 10 tracks.
Para assistir: Outra face inacreditável da cultura de Salvador é a música. No documentário Axé: Canto do Povo de um Lugar, lançado em 2016 e dirigido pelo Chico Kertész, dá pra ter uma ideia bem legal disso e conhecer a origem de um dos ritmos de maior sucesso no Brasil. Super recomendado e tem no catálogo da Netflix.